Se a tecnologia e, em particular, a revolução digital modificam o modo de pensar, isto de qualquer forma não acabaria por atingir também a fé e a sua comunicação?
A tecnologia, como crêem os mais cépticos, não é só uma forma de viver a ilusão do domínio sobre as forças da natureza, na perspectiva de uma vida feliz. Seria redutivo considerá-la apenas fruto de uma vontade de poder e domínio. Bento XVI escreve na Caritas in veritate que ela é ‘um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade do homem. Nela exprime-se e confirma-se o domínio do espírito sobre a matéria’ (n. 69), e ao mesmo tempo manifestam-se as aspirações e as tensões da sua alma. Portanto, a tecnologia é a força de organização da matéria da parte de um projecto humano consciente. Neste sentido, a técnica é também ambígua, porque a liberdade do homem pode ser usada inclusive para o mal (cf. n. 70).
Exactamente por esta sua natureza a tecnologia incide sobre o modo de entender o mundo e não só de o viver: ‘É impossível – escreve Pierre Lévy – separar o ser humano do seu ambiente natural, dos sinais e das imagens através dos quais dá sentido à vida e ao mundo. Ao mesmo tempo, não se pode separar o mundo material – e menos ainda sua parte artificial – das idéias pelas quais os objectos técnicos são concebidos e utilizados pelos homens que os inventam, produzem e se servem deles’.
Por exemplo, o avião que nos fez conhecer o mundo de maneira diferente em relação ao carro; a imprensa, que nos fez entender a cultura de modo diverso. O crente sabe ver na tecnologia a resposta do homem à chamada de Deus a dar forma e a transformar a criação e, por conseguinte, também a si mesmo, com o auxílio de instrumentos e procedimentos.
Neste sentido, João Paulo II fez votos por uma ‘divinização do engenho humano’, e Bento XVI, por sua vez, falou sobre o ‘extraordinário potencial das novas tecnologias’, que definiu como um ‘verdadeiro dom para a humanidade’.
Neste ponto, a pergunta surge espontânea: se a tecnologia e, em particular, a revolução digital modificam o modo de pensar, isto de qualquer forma não acabaria por atingir também a fé e a sua comunicação?
Em 1985, ao notar a crescente interacção entre tecnologia e electrónica na direção de uma ‘nova ordem mundial’ da comunicação, João Paulo II pressentiu que esta mudança ‘envolve o inteiro universo cultural, social e espiritual da pessoa humana’. Porventura, este desenvolvimento relaciona-se também com a consciência crente sobre a fé?
O desenvolvimento tecnológico, sabemo-lo, pode ‘induzir à idéia de auto-suficiência da própria técnica , quando o homem, interrogando-se apenas sobre o como, deixa de considerar os muitos porquês pelos quais é impelido a agir’. O absolutismo da técnica ‘tende a produzir uma incapacidade de perceber aquilo que não se explica meramente pela matéria’ (Caritatis in veritate, 70 e 77).
Ao contrário, se for bem entendida, ela consegue exprimir uma forma de aspiração à ‘transcendência’ em relação à condição humana, como é vivida actualmente. E deve-se dizer isto também a propósito daquele ‘espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias informáticas’, ou seja, pelo chamado ‘ciberespaço’.
O teólogo católico Tom Beaudoin, com efeito, notou como este espaço tão peculiar pela rapidez das suas conexões, representa o desejo do homem de ma plenitude que sempre o supera a nível quer de presença e relação, quer de conhecimento: ‘O ciberespaço realça a nossa finitude’, ‘reflecte o nosso desejo de infinito, do divino’. Portanto, buscar tal plenitude significa, de qualquer modo, agir num campo ‘em que a espiritualidade e a tecnologia se cruzam’.
Certamente, a questão não é recente. Remonta, por exemplo, à reflexão de Avery Dulles, que se tornaria cardeal, o qual no início dos anos 70 se propôs descobrir de que maneira ‘os estilos mutáveis de comunicação influenciam o conhecimento da igreja, na sua natureza, mensagem e missão’, insistindo sobre a relação entre teologia e comunicação. Poder-se-ia prosseguir na densa rede de relações que este interesse construiu no tempo.
Meditando exactamente sobre este cruzamento, nasce o desejo de verificar a possibilidade de uma ‘ciberteologia’.
Se as experiências especificamente religiosas não podem se entendidas como dependentes das técnicas de comunicação, contudo é evidente que as técnicas telemáticas estão começando a influenciar também o modo de pensar a fé cristã e, sobretudo, a ter um influxo, ora virtuoso ora problemático , sobre as suas categorias de compreensão. Obviamente, não se pretende afirmar uma espécie de determinismo tecnológico, mas propor uma reflexão sobre o contexto em que já hoje, mas sobretudo no futuro, se desenvolverá a reflexão teológica.
Como a cultura digital incidirá sobre o modo de apresentar um discurso acerca de Deus e da fé, de forma especial se este discurso for especificamente católico?
A reflexão até este momento atenta à religião em rede em termos gerais ou também às ‘ciber-religiões’, ao ‘tecnognosticismo’ e ao ‘tecnopaganismo’. Portanto, esteve mais atenta ao ‘religioso’ que ao ‘teológico’, com o conseqüente risco de esmagar e homologar as identidades e as teologias específicas, quando não são reduzidas por uma mera abordagem sociológica niveladora.
Certamente, o facto de que nasceram algumas formas de religiosidade virtual em rede é o epifenómeno de uma mudança complexa e ampla na compreensão do sagrado. Todavia, não é suficiente deter-se aqui. Na realidade a reflexão ciberteológica já iniciou, mas na incerteza de um seu estatuto epistemológico. Com efeito, o termo é pouco usado e com freqüência o seu sentido não é claro. A pergunta, ao contrário, é clara: se os mass media electrônicos e as tecnologias digitais ‘modificam o modo de comunicar e até de pensar, qual impacto terão sobre o modo de fazer teologia?’
As primeiras e tímidas tentativas de chegar a uma definição, na realidade, procuraram esclarecer os termos desta questão. Susan George reuniu quatro definições de ciberteologia como exemplo de uma sua possível compreensão.
A primeira definição enquadra-a como teologia dos significados da comunicação social no tempo da internet e das tecnologias avançadas.
A segunda entende-a como uma reflexão pastoral sobre o modo de comunicar o Evangelho com as capacidades próprias da rede.
A terceira interpreta-a como o mapa fenomenológico da presença do tema religioso na internet.
A quarta, como o sulcar a rede, entendida como lugar de capacidades espirituais.
Como se vê, trata-se de uma tentativa interessante, embora inicial, de definir um campo de reflexão.
A teóloga inglesa Debbic Herring, por sua vez, no site cybertheology.net que é uma colectânea lógica de recursos e links, distinguiu três secções: ‘teologia no’, ‘teologia do’ e ‘teologia para’ o ciberespaço. A primeira reúne materiais teológicos disponíveis em rede; a segunda oferece uma lista de contributos teológicos para o estudo do ciberespaço; a terceira consiste numa série de lugares (fóruns, sites, mailing lists, etc.). Estas distinções são interessantes e esclarecem melhor, enriquecendo a reflexão.
Carlo Formenti no seu site Incantati nella rete dedica um capítulo à ciberteologia, interpretando-a como o estudo das condições teológicas da tecnociência, uma ‘teologia da tecnologia’, que Susan George, ao contrário, tende a manter distinta.
O fascículo monográfico da revista Concilium de 2005, intitulado Cyber-spazio, cyber-etica, cyber-teologia, oferece uma contribuição interessante que implicitamente parece definir a ciberteologia como o estudo da espiritualidade que se exprime ‘na’ e ‘através da’ internet e das modernas representações e imaginações do ‘sagrado’. Por conseguinte, tratar-se-ia da reflexão sobre a mudança na relação com Deus e com a transcendência.
Contudo, talvez tenha chegado o momento de dar um passo além, buscando um novo estatuto, mais exacto, para esta disciplina que parece tão difícil de definir.
Portanto, é necessário considerar a ciberteologia como a inteligência da fé na era da rede, isto é, a reflexão sobre a possibilidade sobre a pensabilidade da fé à luz da lógica da rede.
Referimo-nos à reflexão que nasce da questão sobre o modo como a lógica da rede, com as suas poderosas metáforas que agem sobre o imaginário, e também sobre a inteligência, pode modelar a escuta e a leitura da Bíblia, o modo de compreender a Igreja e a comunhão eclesial, a revelação, a liturgia e os sacramentos: os temas clássicos da teologia sistemática.
A reflexão é mais importante do que nunca, porque resulta fácil constatar como cada vez mais a internet contribui para formar a identidade religiosa das pessoas. E se isto é verdade em geral, cada vez mais o será para os chamados ‘nativos digitais’.
A meditação ciberteológica é sempre um conhecimento inspirado na experiência da fé. Ela permanece teologia no sentido que corresponde à fórmula fides quaerens intellectum. A ciberteologia, portanto, não é reflexão sociológica sobre a religiosidade na internet mas fruto da fé, que desencadeia de si mesma um impulso cognitivo numa época em que a lógica da rede caracteriza o modo de pensar, conhecer, comunicar e viver.
Enfim, talvez seja bom esclarecer que não será suficiente considerar a reflexão ciberteológica como um dos muitos casos de ‘teologia contextual’, isto é, que tem presente de maneira específica o contexto humano no qual se exprime. Neste momento certamente é assim. Todavia, o contexto da rede tende (e fálo-á sempre menos) a não se isolar como um âmbito específico e determinado, mas (e sê-lo-á sempre mais) a integrar-se no fluxo da nossa exigência quotidiana. A cultura digital tem a pretensão de tornar o ser humano mais aberto ao conhecimento e às relações. Certamente, não é desprovida de ambigüidades e utopias. De qualquer modo, a internet e a sociedade fundada nas redes de conexão começam a apresentar desafios deveras significativos não só à pastoral, já há tempos enfrentados pela Igreja, mas também a própria compreensão da fé cristã, a partir da sua linguagem de expressão.
Talvez a imagem que melhor representa o papel e a pretensão do cristianismo em relação à cultura digital seja a do ‘cultivador de sicómoros’, transmitida pelo profeta Amós (7,14) e interpretada por Basílio. O então cardeal Ratzinger, no seu discurso no congresso Parábolas mediática, utilizou esta imagem feliz para dizer que o cristianismo é como um corte sobre um figo. O sicómoro é uma árvore que produz muitos frutos que permanecem sem gosto, insípidos, se não se lhes fizer uma incisão para fazer sair o seu sumo. Portanto, para são Basílio os fruto, os figos, representam a cultura do seu tempo. O Logos cristão é um corte que permite a maturação da cultura. E a incisão requer sabedoria porque deve ser bem feita e no momento justo. A cultura digital é abundante de frutos a ser cortados, e o cristão é chamado a realizar uma obra de mediação entre Logos e a cultura digital. E a tarefa não está isenta de dificuldades, mas hoje parece mais exigente do que nunca. Em particular, é necessário começar a pensar a rede teologicamente, mas também a teologia na lógica da rede.
SPADARO, A. O risco de se deter no como : Rede e ciberteologia. L’OSSERVATORE ROMANO, edição semanal em português, n. 3 15 jan. 2011, p. 2, 4.